DEZEMBRO/2024 - 57a. edição


Meus Livros

 

A PRISÃO

 

 

Eu não sabia como agir. Se fazia parte da passeata pelas ruas centrais de Salvador, protestando contra a ditadura militar, ou se acompanhava as manifestações estudantís e cobria os acontecimentos para o Jornal da Bahia, onde era repórter. Decidí-me por participar das manifestações. À tarde, vestido com um blusão azul (apesar do sol forte de todos os dias), saí gritando palavras de ordem contra a ditadura, contra o governo estadual, contra a polícia da Bahia, contra tudo.

Alegre, cheio de vigor da juventude, ia com a manifestação estudantil em direção à praça da Sé, passando pela avenida Sete e rua Chile. Em frente ao palácio do governo, na esquina entre a rua Chile e o paço Municipal, vi quando dois braços se erguiam segurando uma máquina fotográfica. Ela clicava repetidamente.

Não titubeei. Mesmo pequeno, fiz um esforço e pulei para alcançar os braços de alguém que se escondia por trás da janela do palácio. Arranquei a máquina daquela pessoa e a joguei no chão de asfalto. As fotos que tentavam tirar dos manifestantes estavam irremediavelmente perdidas. Pelo menos, naquele dia, por aquela máquina, ninguém seria identificado.

Estava com a alma lavada. Tinha cumprido minha parte no “processo revolucionário”. Voltei para o quarto onde morava, lá pelas l8:00 horas, cheio de orgulho. Dormí como um anjo.

Era o ano de 1968. O Brasil fervia com as manifestações estudantís. Rio, São Paulo, Salvador eram palcos para estudantes universitários e secundaristas. Na Bahia, governava o Estado Luís Viana Filho, ex-ministro da Justiça de Castelo Branco. Era seu vice  Jutahí Magalhães.

Na manhã seguinte à minha gloriosa ação  dirigí-me ao Jornal da Bahia. Na pauta, estava a escala para cobrir o movimento estudantil daquele dia. Gilson, chefe de reportagem, segundo diziam membro do PCB, me orientou sobre a cobertura. Delicada, segundo ele, pois a censura atuava em todos os setores da imprensa.

E lá estava eu, novamente com o mesmo blusão azul, percorrendo as ruas Sete e Chile. Agora sem as palavras  de ordem, sem o “abaixo a ditadura” do dia anterior. Comprenetado, seguia as manifestações, o movimento das tropas da Polícia Militar, as correrias e os gritos de dor. Lá para as 17:00 horas, em frente ao paço Municipal e de costas para o Elevador Lacerda, fiquei a assistir a tudo. Estava acompanhado de Florisvaldo Matos, meu professor de Jornalismo, e correspondente do Jornal do Brasil, e de Eliezer Gomes, de A Tarde.

Sirenes, gritos, bombas de gás lacrimogêneo, correrias. Era o auge das manifestações. De repente, uma mão me cutuca as costas. Virei-me. Era um cidadão alto, magro, de terno escuro. Chamou-me ao lado, agarrou meu braço esquerdo e disse que alguém queria falar comigo no pátio do Palácio do Governo. Não pude nem avisar os outros. Quando dei de mim, um portão fechava-se às minhas costas.

E saiu em direção a uma porta estreita, que dava para o interior do palácio.

Senti um calafrio. Por que estava eu alí, sentado naquele banco, fora das minhas obrigações de repórter? Não lembrava de meu dia de glória anterior! tempo

O tempo ia correndo. E ninguém aparecia. As horas  estavam embaralhadas e só aparecia frente a mim a indagação: “por que estou aqui”?

Estava neste vagar quando aquele homem surgiu frente a mim.

-Quem é você? De onde você é? Por favor, me dê sua carteira de identificação, disse-me ele. Logo em seguida desapareceu novamente. Conseguí verificar as horas. Eram 17,30 horas. Ia escurecendo em Salvador. Foi quando o portão se abriu e por ele passou Florisvaldo Matos. “Agora, sim, tudo se resolverá,” pensei. Florisvaldo olhou para mim e exclamou:

-Que você está fazendo aí?

-E eu sei! disse. Até agora não falaram nada. Só me mandaram ficar aqui, sentado. E levaram minha carteira de identidade.

 -Tá certo, fique aí que eu vou saber alguma, disse Florisvaldo.

 Ele também entrou porta a dentro, em direção ao palácio.             Pouco tempo depois, surgiu uma pessoa, desconhecida para mim.

 -Diga seu nome. De onde você é? Onde você nasceu? Que faz na Bahia

 Respondí a tudo: meu nome, que era alagoano, natural de Feira Grande e trabalhava no Jornal da Bahia como repórter e estava alí cobrindo as manifestações estudantís.

A pessoa foi embora, sem nada mais dizer.

Eram 18:30 horas quando chegou uma outra pessoa. E as mesmas perguntas:

-Quem é você? De onde é? Onde nasceu? Que veio fazer aqui?

Depois, pediu para acompanhá-lo.

Entramos no palácio, subimos uma escada de madeira e demos numa grande sala cheia de gente. Birôs tinham uns cinco. Havia dois serviços de rádio. Fui levado à frente de uma pessoa alva, alta, magra. Educadamente, perguntou meu nome, meu endereço, de onde era, que fazia em Salvador. Respondí a tudo. Olhei para o lado e ví Florisvaldo Matos junto a uma senhora gorda, baixa, negra. Depois soube que era Zilá, correspondente do jornal O Estado de São Paulo

-Sente-se aí, disse-me o homem.

Após uns 15 minutos, mais ou menos, aquele homem - que parecia ser o chefe daquela bagunça - disse-me:

-Olha, foi um engano. O governador encarregou-me de pedir-lhe desculpas. O senhor está liberado, afirmou.

Foi um alívio. Virei-me para Zilá e Ariosvaldo e conversamos durante poucos minutos. Agradecí a eles e me despedí. Foi aí que surgiu a figura magra, alta, que me havia conduzido até o pátio do palácio.

-Olha, senhor, vou acompanhá-lo até a porta que vai dar até a rua Chile. Desculpe-me. Deve ter havido algum engano.

Dizendo isto, desceu as escadas comigo. Eu ainda retruquei:

-Não precisa me acompanhar, não! Isto é da vida e da profissão

Quando chegamos quase na calçada do palácio, ví um jipão com os fundos abertos e duas pessoas dentro. E o susto: fui empurrado por meu acompanhante com tanta força que caí dentro do carro. Imediatamente a porta trazeira foi fechada por um militar.Deu tempo de ver Zilá saindo do palácio. Ela também me viu, arregalando os olhos.

O carro saiu em desabalada velocidade pela contramão, descendo em direção da avenida Sete.

Eu tremia. E não era de frio.

Algum tempo depois, o jipão entrava no quartel da Polícia Militar da Bahia, no fim da, pertinho do quarto onde morava na avenida Sete, número 141. Abriram a trazeira do carro, mandaram que nós seguíssemos um cabo (eu e os outros  dois,  que depois soube serem estudantes, um universitário e um secundarista).

Em frente a uma autoridade policial, sentada no birô, que identifiquei como sendo o tenente Etienne, mandaram-me tirar o cinto e entregar todos os pertences. Tinha comigo uma carteira com alguns documentos, como carteira estudantil, e duas chaves do quarto onde morava. Depois, novamente me identificaram. Citei meu nome, nomes de pai e mãe, endereço de Salvador, endereço de meus pais em Alagoas. Um soldado batia todas as respostas numa máquina velha. sentado à direita do tenente. Um outro soldado, sangrando na testa, entrou no recinto e se identificou. Disse ele que tinha recebido uma pedrada dos estudantes.

O sangue lhe escorria tênue pela fronte.

Foi aí que entraram outros soldados. Um deles, olhou-me frio.

 -Tenente, deixe que eu arranque o bigode desse cachorro a unha, falou.

 - Não, nada disso, respondeu o tenente Etienne.

 Um frio percorreu minha espinha.   

 Após isto, levaram-me até o pátio do quartel e pediram que tirasse os sapatos e meias. Revistaram-me totalmente.

 Estava escuro.

Fechado, ou melhor, trancafiado numa cela minúscula, acompanhado dos outros dois “companheiros”, e tendo na entrada um cão da raça pastor alemão  a me guardar, comecei a ficar com medo. Medo do que poderia vir das ordens do tenente Etienne e de seus RS (Representação de Segurança), como eram chamados os policiais do batalhão de choque da Polícia Militar da Bahia. Eram soldados enormes, armados com cassetetes conhecidos como “fanta” devido ao tamanho.

Por tres vezes, fui retirado da cela para responder àquelas mesmas perguntas que me faziam desde o primeiro momento em que foi detido. E por tres vezes voltei ao convívio com os “companheiros”. Estava muito escuro. Na cela não havia lâmpada nem qualquer outro objeto que servisse para iluminar o local. Na escuridão, ouvíamos gritos de dor, latidos de cães pastores e barulho de gente indo e vindo. Só ouvíamos.

Uma eternidade depois, fui novamente chamado:

-Alagoano, venha até aqui!

Era um milico me chamando. Ele abriu a cela, pegou em meu braço e disse:

-Vamos até a sala do tenente.

Lá, além do tenente Etienne e do policial que batia na máquina de escrever, estavam dois soldados, um cabo e um oficial (não sei identificar bem a graduação deste pessoal. Podia ser um major, um capitão, um coronel, qualquer um).

-O senhor vai acompanhar este oficial. Aqui estão seus objetos pessoais. Falta alguma coisa?

Era o tenente Etienne.

Faltavam as chaves. Mas eu disse que não faltava nada, que tudo estava alí. Levaram-me até uma rural Willys, colocando-me no banco trazeiro entre os dois soldados. O cabo assumiu a direção e ao lado, no banco dianteiro, ia o oficial. Apesar de ser mais de 21:00 horas, notava-se que ele era sarará.

O veículo saiu em direção a avenida Sete e nas imediações do local onde morava o oficial falou pela primeira vez:

- Sou o ajudante-de-ordem do vice-governador Jutahy Magalhães. O senhor está solto. Ele manda pedir-lhe desculpas pelo ocorrido.

- Olha, esta é a segunda vez que me dizem isto. Se estou solto, pode deixar-me descer aqui mesmo, disse-lhe.

-Não, não posso fazer isto. O senhor será levado até o jornal Diário de Notícias e entregue ao senhor Clementino, redator-chefe. O senhor o conhece, falava o oficial.

 - Claro, claro que o conheço, respondí.

Mas eu não conhecia Clementino algum. Eu era do Jornal da Bahia. O diário de Notícia era um órgão dos Diários Associados, juntamente com o jornal O Estado da Bahia, a Rádio Sociedade da Bahia e a Tv Itapuã.

Chagamos a rua Carlos Gomes, onde funcionava o jornal. Na entrada do prédio me adiantei um pouquinho e perguntei baixinho a uma pessoa na frente da redação¨

 - Quem é Clementino

 - Aquele alí, o gordo, respondeu.

Dirigí-me até ele:

- Clementino, meu amigo, olha como sofre a imprensa. Por fazer meu trabalho fui preso. Mas é isto mesmo. Foi uma experiência.

Aquele cidadão, conhecido como Clementino, redator-chefe do jornal Diário de Notícias, me abraçou.

-Essa é uma experiência que você não esquecerá nunca. O vice governador pediu-me para recebê-lo. É bom tê-lo de volta.

Dizendo isto, o redator-chefe foi agradecendo ao ajudante-de-ordem do vice governador. Este ainda dirigiu-se a mim:

-Mais uma vez as desculpas do governo da Bahia.

A redação toda me olhava. Apesar de ser tarde da noite, as redações dos jornais naquela época iam até a madrugada. Eram arcaicos, impressos em linotipo. Mais calmo, com a certeza de que não continuava na cela do quartel da Polícia Militar, virei-me para Clementino e falei:

-Meu amigo, peço-lhe desculpas, pois esta é a primeira vez que o vejo. Tive de me expressar como se o conhecesse para dar a entender que o conhecia.

Neste momento, uma pessoa levantou-se, empurrou a máquina de escrever, levantou-a e se dirigiu até a mim.

 - Meu amigo, ainda está com medo?

 Era Jô, colega da faculdade e de sala. Alta, negra, bonita

 - Jô, esse medo não vai passar nunca!

(do livro MEMÓRIAS DE UM QUASE COMUNISTA, de Manoel Ferreira Lira)